No final do mês de março, a babá
que estava nos ajudando, pediu para sair. Preferiu voltar
para a cidade dela. Mas, não é sobre isso que vou escrever aqui. Eu sinto uma
gratidão enorme pelos três meses que Maria passou com a gente. Ela é
ótima, boa, dedicada em tudo o que faz, comprometida. Aquele tipo de pessoa que
a gente se sente feliz em conhecer. Do fundo do meu
coração, eu sabia que a rotina das viagens para Maria, que inclusive é casada,
não estava sendo boa. E, no final das contas, eu é que me senti feliz por ela
ter arrumado uma oportunidade na cidade dela.
Mas, aí que decorrente disso, eu
precisei procurar uma babá nova, para me ajudar em casa. Então, uma amiga mandou
o contato de uma babá que foi indicada em um grupo que ela faz parte. Muito bem
indicada, por sinal. Cheia das melhores referências. E eu não duvido que ela
seja verdadeiramente especial. Tanto que resolvi ligar. E daí que ela,
muito educada e cortês, começa a me fazer algumas perguntas. E, no meio da
conversa, eu menciono que tenho dois filhos, que o mais velho já não demanda
muito, mas que algumas vezes eu posso precisar que acompanhe o meu pequeno em
alguma das terapias que ele faz, quando eu não puder ir, por algum motivo. E
ela, calmamente, me pergunta por que o meu filho faz terapias. Ao que respondo tranquilamente:
porque ele tem síndrome de Down. Daí ela me sai com a pérola: “me diga uma
coisa, dona, e esse seu filho é daquele tipo agressivo? ”
Pronto. Foi o gatilho para a
minha dor lombar. Ai... que dor. Na hora, eu disse que meu filho era uma
criança e me fiz de desentendida com a dúvida dela e ela prosseguiu a me
explicar que existem crianças com essa "doença" que jogam coisas nas pessoas, que batem, que mordem... Eu me limitei a dizer que meu
filho era uma criança... e achei melhor desistir dela, não sei se fiz certo, se fui precipitada, simplesmente não consegui e ela tem o meu perdão, mas, não consegui prosseguir a
conversa e nem pensar em agendar uma entrevista.
Aí, em seguida lembrei um
episódio que Cynara me contou de quando Arthur, seu filho que tem 8 anos, estava
internado em um hospital e que ela foi questionada por uma profissional de saúde se
corria o risco de levar uma mordida dele.
Também lembrei de Betina, que
contou que foi indagada por uma pessoa que queria saber se as crianças com
síndrome de Down a mordiam...
Teve também aquela blogueira que
escreveu aqueles absurdos (que não vou desenvolver porque não quero dar nenhum
ibope para ela).
Aliás, eu me canso de ouvir
frases do tipo “eles são tão agressivos” ou “eles são tão carinhosos” ou “eles
têm a libido mais aflorada” ou “o grau dele é baixo? ”
Eu escuto isso não apenas de
pessoas tidas por desinformadas. Escuto também dos pais, escuto até mesmo de profissionais
de saúde! Dia desses eu soube de um médico que não deu um relatório para uma
mãe carente dar entrada no benefício da assistência social, porque ele avaliou
que o grau de síndrome de Down da criança era baixo. Creia!
Bom... desde o início eu sabia
que não seria fácil. E vou mais longe, acho que até já comentei aqui, mas uma das
minhas tristezas ao receber o meu filho com síndrome de Down foi perceber que
eu não sabia nada sobre o assunto.
Normal. A gente só se interessa
por aquilo que nos afeta, eu acho. Aliás, foi o que eu concluí quando Lucas
nasceu. Que eu era tão ignorante quanto todos os outros. Só que eu tenho uma
dificuldade enorme em julgar o outro, sempre procurei não me permitir ser
levada por preconceitos. É óbvio que, considerando a minha pequena condição
humana, muitas vezes eu falho. Mas, eu tento. Sempre tento não rotular ou
estereotipar as pessoas. Não dá para sair por aí fazendo isso, gente. Mas é o
que acontece. Basta olhar um pouco ao redor e perceber o quanto nós rotulamos
as pessoas. Não vou citar rótulos aqui, porque não me sinto nem um pouco
confortável para os colocar em ninguém. “Rótulos servem para embalagens, não
para pessoas”, vi isso em um vídeo uma vez e achei sensacional.
Porque a pessoa tem síndrome de
Down, quer dizer que é necessariamente carinhosa, ou mesmo agressiva, ou que tem a
libido aflorada?! Não, por favor, pare com isso! Pelo menos se pretende
olhar as pessoas de uma nova forma e garantir que você vai permitir que elas
se expressem exatamente como são. Até porque, é assim que a gente quer que seja
com a gente, não é?!
Eu aprendi algumas coisinhas
nestes quase seis anos de vida de Lucas. Algumas consigo dividir aqui, outras
acabo esquecendo. Lembro claramente que quando eu consegui me comunicar com as
pessoas a respeito do nascimento de Lucas, eu me referi a ele como “portador
da síndrome de Down”. Hoje eu sei que
não é possível portar uma síndrome, uma deficiência. Este termo é completamente
inadequado. Mas, para aprender, eu precisei adentrar neste universo e foi o nascimento de meu filho que provocou isso. Por isso, tenho paciência com o outro e procuro instruir, sem problemas.
Independente da semântica,
perceba que o termo “portador” tira completamente a humanidade. É uma pessoa que tem
uma deficiência. É uma pessoa com deficiência – nada de deficiente, certo? Eu
sei que não é simples, mas é só a força do hábito. A gente precisa
desconstruir. E construir o certo. E se "humanizar". Não somos perfeitos. Ninguém é.
As pessoas com síndrome de Down
ou qualquer outro tipo de deficiência intelectual e/ou cognitiva sofrem ainda
mais com esses estereótipos. O fenótipo da síndrome de Down acaba fortalecendo
isso. O que ninguém percebe é que precisa enxergar a pessoa. Eu vejo isso
inclusive nas famílias. Quantas vezes eu percebo que os pais acreditam que a
criança não consegue entender, que não vai aprender... e então, a família não
dá o limite necessário, não permite que aquela criança mostre quem
verdadeiramente é.
Difícil, muito difícil. Eu penso
que é um grande desafio. Mas, é possível. Porque no caso particular de Lucas, eu
sei que ele é muito mais do que qualquer um que não conviva com ele possa
imaginar. Meu filho tem dificuldade com a fala, está diagnosticado com a
dispraxia verbal, mas é notável a sua compreensão de tudo o que o cerca. Ele
tem habilidades lindas, se comunica bem, acompanha as atividades na escola,
como as outras crianças, resguardada a maior necessidade de concretização. Lucas surpreende todos os dias com a sua perspicácia, com a sua narrativa
e percepção dos fatos, algumas vezes com uma pitada de fantasia bem engraçadinha. Porque ele tem um senso de humor daqueles e vocês não imaginam, mas
existem momentos em que Lucas reconta histórias, com a versão a seu favor, e
imita os colegas da escola, bem piadista o meu caçula.